terça-feira, 5 de outubro de 2010

A história se repete

Acordou. Mas não como se espera de um protagonista de uma grande história, com objetivos em mente. Ele já não os tinha há tempos. Apenas acordou.

O que diferenciou esse despertar daquele de outros dias é que já não estava no começo do dia e ele percebeu isso pois não era o sol da manhã que sentia sobre sua pele, acariciando-o com seu suave calor, mas o sol quente do começo da tarde, que o queimava e do qual ele sempre fugia.

Então percebeu que não estivera exatamente dormindo, mas em algum outro estado de consciência do qual não se lembrava. Consciência! Era isso que tinha agora e que lhe faltava desde quando já não se lembrava mais. Aproveitando o momento lúcido, levantou-se, mas não sem uma certa dificuldade, proporcionada pelas dores causadas pela posição desconfortável na qual passara a noite, em cima de alguns pedaços de papelão na rua.

Caminhou a passos vacilantes pela calçada e achava estranho que as pessoas dele desviassem, como se estivessem com nojo, pois sempre fora um negro respeitável e altivo, apesar da pobreza na qual sempre vivera. Sentiu-se desconfortável com isso. Mais desconfortável! INSUPORTÁVEL!

Os olhares! Tantos olhares! Tanto julgamento! Andou mais rápido. Queria fugir deles, encontrar um abrigo onde pudesse se esconder... E foi então que parou em frente a uma empresa, com a fachada espelhada, e se viu frente a frente com um demônio. Frente a frente consigo mesmo.

O orgulho do negro que nele habitava se esvaíra para dar lugar a algum tipo de selvageria inominável. Quem o olhou de volta era um animal, com os cabelos sujos formando um emaranhado disforme qualquer à sua volta, alguém cujo rosto estava vincado por diversas cicatrizes vindas de batalhas contra desconhecidos materiais, de carne e osso, e conhecidos imateriais, a fome e o frio. Sua fisionomia o impressionou a tal ponto que o deixou boquiaberto! Mas, espere um pouco... Abrira a boca, mas não via seus dentes! Levantou o lábio e notou que ali só havia uma gengiva machucada, dolorida pela falta de cuidado ao longo dos anos. Tomou-lhe o horror! O horror de ver-se em tal estado se apoderou dele irrevogavelmente! Olhou para os lados, em franco desespero, com mais medo ainda dos olhares!

Começou a correr! Correu e cansou, mas não parou. Faltava o fôlego, mas precisava chegar até o seu esconderijo! Até o lugar onde guardava seu tesouro. Chegou, revirou alguns lixos e lá estava. Ainda não acendera-a, mas a expectativa já o fazia começar a deixar este mundo. Somente a habilidade de anos pôde fazer com que vencesse a ansiedade desvairada que o acometia.

Acendeu.
Tragou.
Já não era mais um animal. Nem um demônio.
Já não era mais nada.