sábado, 3 de dezembro de 2011

Amanhecer

O carro o deixou à porta de sua casa e saiu cantando os pneus e as últimas risadas de uma longa noite. Quando o silêncio baixou à sua volta e se viu em meio à turva realidade é que pôde se lembrar do que ouvira de seu amigo há tempos, naquela época depois de quando tudo acabara: que a vida de solteiro que lhe aguardava era feita de encontros repletos de euforia e de vazio em igual proporção. Agora, passado o inebriante momento do encontro dessa noite, é que entendia o vazio do qual aquelas palavras estavam cheias.


Não sem certa dificuldade, girou a chave e abriu a porta com a outra mão, com a qual segurava o final de sua cerveja. Estava cansado, mas não sentia vontade de dormir ainda. Ora, era um final de madrugada estranhamente quente e o que lhe sobrara de cerveja na garrafa ainda estava gelada! Propôs-se a bebê-la.


Subiu as escadas que levavam ao telhado, de onde teria uma bela visão do resto de seu bairro. Sentou-se no beiral, com as pernas balançando imprudentemente para uma longa queda até o seu quintal e deitou as costas nas telhas vermelhas atrás de si. Sorveu um gole de sua cerveja e com ele vieram as lembranças com as quais tanto lutara para se desvencilhar por toda aquela noite.


Imagens desconexas se sobrepunham em sua mente: um abraço apertado quando necessário, uma palavra dura que tinha de ser dita, o perfume que ficava quando ela ia embora e todos os beijos, como se cada um fosse único. Tomou mais um gole da bebida, mas ao invés de lutar contra tudo o que aquelas lembranças lhe causavam, decidiu nelas mergulhar de uma vez. De olhos fechados, passou a mão pelos cabelos, em desespero por saber que todas aquelas imagens que se lhe apresentavam eram já, há muito, antigas, mas ainda traziam consigo o resiliente sentimento de perda, tão presente desde que tudo ocorrera, e também a consequente saudade, para fazer companhia ao primeiro.


Eram lembranças realmente muito fortes, que o tempo, a contrassenso do que diziam, ao invés de enfraquecer a dor que causavam, somente tratara de fortalecê-la.


Entontecido com seu devaneio, deixou-se levar, como que à deriva pelo seu mar de recordações, e perdeu um pouco a noção de há quanto estava ali. Somente quando a claridade começou a lhe incomodar é que percebeu que o dia estava amanhecendo. Abriu seus olhos e, ao horizonte, viu o sol se erguer das trevas e banhar de luz todos aqueles que, na escuridão, dele se escondiam. Sim, que se escondiam, assim como ele mesmo fazia agora. 


Então, ciente disso, sentiu-se estranho. Como que inspirado por essa situação, tomou às mãos sua carteira e a abriu. De lá retirou o primeiro beijo dado e, como se fosse um ingresso velho de cinema, rasgou-o e o jogou de lado. Na sequência retirou a primeira reconciliação e, tal qual uma carta velha, amassou-a e deu-lhe o mesmo fim do beijo. Dilacerou seu rosto como faria com uma foto e assim foi amontoando, recordação após recordação, ao seu lado. Arrancou, também, ano após ano de namoro como se fossem mensagens apagadas da memória de um celular.


Por fim, levou a mão ao pescoço e retirou a correntinha que lhe presenteara uma vez. Consigo só havia a metade do coração: com ela estava a outra. Romanticamente, arrebentou-a com um puxão e juntou-a à pilha que acumulava. Então recolheu todo aquele lixo, amassou tudo junto e, com toda a força de um coração partido, arremessou aquele amontoado todo para longe de si.


Terminou sua cerveja e jogou a garrafa para longe também. Tal qual o sol que se erguia também ele o fazia. Estava na hora de deixar ontem para trás e viver hoje a sua vida para que por fim merecesse o direito de sorrir amanhã.