quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Saudade

"Olha, querido, está tocando aquela música!"

Não que as palavras tivessem de fato saído escapado de seus lábios, mas ela sentia como se assim tivesse sido. No entanto, teve de manter essa doçura apenas em pensamento pois a pessoa a quem lhe dirigia tal carinho não estava mais com ela, já há alguns anos.

Era uma música estrangeira, de há muito tempo atrás, quando eram jovens. Uma melodia lenta que terminava acelerada e que eles dançaram em momentos felizes. Os últimos acordes, que antes eram acompanhados de risos e beijos, agora misturavam-se a solitárias lágrimas que escorriam lentamente por sua face.

Esse hábito que criara, de falar a ele como se ainda estivesse ali, ela o sabia, não lhe fazia bem. Mas a situação em que se encontrava era muito angustiante! Todos os momentos felizes que passaram juntos, todas as brigas, as discussões sobre filmes, política, sobre a vida... Tudo se fora naquele último suspiro...

Ele estava deitado, já em casa. Os médicos lhe concederam esse gosto, para que pudesse passar mais algum tempo com os que lhe eram mais queridos. Ela não saíra de perto dele, nem por um instante, com receio de que, ao desviar-lhe os olhos, a Morte lhe viesse, aproveitando-se de seu momento de descuido.

Então, num dia de nublado e frio, a frágil mão que apertava, maltratada pela doença que o vencia, subitamente retribuiu o aperto. Seu olhar, antes vago e cansado, agora exibia uma urgência, como se quisesse expressar, de fato, toda uma vida pelos olhos, pois o fôlego já começara a lhe faltar. Ela apertou-lhe a mão, com força e desespero crescentes, uma torrente de lágrimas jorrando sobre o peito do marido, do amor de sua vida! Era como se aquele aperto fosse segurar seu espírito junto a ela: depositara suas esperanças nesse desejo.

Quando os lábios cessaram a pressão do beijo que então lhe dera na fronte serena, houve uma troca de sensações: deixara com ele a possibilidade de amar daquele jeito novamente, pois sabia que amor assim novamente não encontraria, ao passo que tomara-lhe toda uma dose daquela saudade que fica.

Saudade era só o que sobrara no fundo daquela taça de vinho que costumavam dividir antes de se deitar. Que ficara no vazio deixado ao seu lado na cama, nas coisas pequenas que compartilhavam, em todos os dias nos quais se apaixonaram repetidamente por suas qualidades e, principalmente, por seus defeitos mútuos.

Reviver esses pensamentos fazia tão bem a ela quanto as conversas que imaginava com ele. Mas não podia deixar de tê-los, era seu único conforto na interminável espera até que pudessem se reunir novamente.

Até lá, secou as lágrimas e pôs-se a ouvir a próxima música e a reviver a próxima lembrança.