sábado, 3 de dezembro de 2011

Amanhecer

O carro o deixou à porta de sua casa e saiu cantando os pneus e as últimas risadas de uma longa noite. Quando o silêncio baixou à sua volta e se viu em meio à turva realidade é que pôde se lembrar do que ouvira de seu amigo há tempos, naquela época depois de quando tudo acabara: que a vida de solteiro que lhe aguardava era feita de encontros repletos de euforia e de vazio em igual proporção. Agora, passado o inebriante momento do encontro dessa noite, é que entendia o vazio do qual aquelas palavras estavam cheias.


Não sem certa dificuldade, girou a chave e abriu a porta com a outra mão, com a qual segurava o final de sua cerveja. Estava cansado, mas não sentia vontade de dormir ainda. Ora, era um final de madrugada estranhamente quente e o que lhe sobrara de cerveja na garrafa ainda estava gelada! Propôs-se a bebê-la.


Subiu as escadas que levavam ao telhado, de onde teria uma bela visão do resto de seu bairro. Sentou-se no beiral, com as pernas balançando imprudentemente para uma longa queda até o seu quintal e deitou as costas nas telhas vermelhas atrás de si. Sorveu um gole de sua cerveja e com ele vieram as lembranças com as quais tanto lutara para se desvencilhar por toda aquela noite.


Imagens desconexas se sobrepunham em sua mente: um abraço apertado quando necessário, uma palavra dura que tinha de ser dita, o perfume que ficava quando ela ia embora e todos os beijos, como se cada um fosse único. Tomou mais um gole da bebida, mas ao invés de lutar contra tudo o que aquelas lembranças lhe causavam, decidiu nelas mergulhar de uma vez. De olhos fechados, passou a mão pelos cabelos, em desespero por saber que todas aquelas imagens que se lhe apresentavam eram já, há muito, antigas, mas ainda traziam consigo o resiliente sentimento de perda, tão presente desde que tudo ocorrera, e também a consequente saudade, para fazer companhia ao primeiro.


Eram lembranças realmente muito fortes, que o tempo, a contrassenso do que diziam, ao invés de enfraquecer a dor que causavam, somente tratara de fortalecê-la.


Entontecido com seu devaneio, deixou-se levar, como que à deriva pelo seu mar de recordações, e perdeu um pouco a noção de há quanto estava ali. Somente quando a claridade começou a lhe incomodar é que percebeu que o dia estava amanhecendo. Abriu seus olhos e, ao horizonte, viu o sol se erguer das trevas e banhar de luz todos aqueles que, na escuridão, dele se escondiam. Sim, que se escondiam, assim como ele mesmo fazia agora. 


Então, ciente disso, sentiu-se estranho. Como que inspirado por essa situação, tomou às mãos sua carteira e a abriu. De lá retirou o primeiro beijo dado e, como se fosse um ingresso velho de cinema, rasgou-o e o jogou de lado. Na sequência retirou a primeira reconciliação e, tal qual uma carta velha, amassou-a e deu-lhe o mesmo fim do beijo. Dilacerou seu rosto como faria com uma foto e assim foi amontoando, recordação após recordação, ao seu lado. Arrancou, também, ano após ano de namoro como se fossem mensagens apagadas da memória de um celular.


Por fim, levou a mão ao pescoço e retirou a correntinha que lhe presenteara uma vez. Consigo só havia a metade do coração: com ela estava a outra. Romanticamente, arrebentou-a com um puxão e juntou-a à pilha que acumulava. Então recolheu todo aquele lixo, amassou tudo junto e, com toda a força de um coração partido, arremessou aquele amontoado todo para longe de si.


Terminou sua cerveja e jogou a garrafa para longe também. Tal qual o sol que se erguia também ele o fazia. Estava na hora de deixar ontem para trás e viver hoje a sua vida para que por fim merecesse o direito de sorrir amanhã.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Verde e Amarelo

Ele estava cochilando no alto de uma colina verdejante, recostado numa das árvores de um pequeno bosque. Era de tarde, ele havia feito uma frugal (mas gostosa) refeição e decidira apreciar alguns momentos de descanso à sombra da árvore mais frondosa dali. 

Dormia a sono solto quando começou a sentir o rosto arder: um dos fortes raios de sol vencera o bloqueio dos galhos da árvore e deitara luz e calor no rosto do rapaz, como que para deliberadamente provocá-lo e fazê-lo acordar. Ele então espreguiçou-se, sorrindo, pois, ainda que tivesse sido acordado (e detestasse sê-lo),  a tarde seguia tão agradavelmente quente e aconchegante que era mesmo um crime continuar dormindo e perder o espetáculo que se punha ante de si. O sol ao alto deitava um brilho belo demais sobre a grama que cobria a colina, como se fosse recoberta não pela vegetação, mas por esmeraldas, pois pareciam cintilar à luz ao alto.

Ele se levantou e pôs-se a caminhar lentamente ao redor do bosque, circundando o cume da colina, sentindo a grama afagar seus pés descalços. A única coisa que quebrava o silêncio e quietude do bucólico lugar era a fúria de um rio, estreito, mas bravo, que corria ao pé da colina e que o separava de outra semelhante a esta, na qual se encontrava. O encontro de todos esses elementos compunha um magnífico cenário: as colinas verdes separadas pelo rio sob o sol da tarde. "Só podia ser o nome de um quadro mesmo!". Rindo de si mesmo, por tal pensamento, sacou uma maçã de sua bolsa e pôs-se a desfrutá-la sentando-se numa pedra, que se oferecia como uma poltrona para que apreciasse toda aquela beleza.

E então ele sentiu aquele reluzir que o acordara novamente! Olhou para o alto, mas não notou diferença no sol. Foi quando percebeu alguém do outro lado do rio, desviando os reflexos dourados para seu rosto. Protegendo os olhos da luz, mirou quem o perturbava e, antes que perdesse a paciência, imobilizou sua língua: havia, na outra colina, uma mulher que parecia se fundir com o próprio cenário: seus cabelos eram feitos dos próprios raios de sol que banhavam o lugar; seus olhos, de esmeraldas, colhidas daquele chão brilhante! Sorria-lhe e seu sorriso parecia emanar mil felicidades!

Ele não se conteve e lhe devolveu o sorriso, bobamente. Levantou-se de onde estava e tentou lhe lançar palavra, a qual era prontamente abafada pelo forte barulho do rio. Intrigado, mas determinado a conhece-la , ele pôs-se a descer de onde estava, indo em direção à beleza que vira. 

Já havia posto os pés no rio, pronto para vencê-lo, quando percebeu que o sorriso que ela lhe lançara havia se transformado num rosto de inigualável tristeza e preocupação: ele voltou, então, sua atenção à correnteza e percebeu que sua força certamente o levaria se tentasse atravessá-la sozinho, por maior que fosse sua vontade e determinação de alcança-la. Ele tornou a olhar, em crescente agonia, por algum galho, alguma árvore que pudesse ajuda-lo na travessia! Qualquer coisa já bastaria, para que pudesse tocar a alvura daquela pele, envolve-la em seus braços e fazer cessar essas rugas que desatavam a preencher seu rosto! Mas não havia nada. Estava por si só. E, tendo percebido sua incapacidade de cruzar o rio, viu também que ela se encontrava presa, acuada pela força daquelas águas. Redobrou, pois, a procura em sua mente de qualquer coisa que pudesse ajuda-la, salva-la do cárcere no qual estava e trazê-la à liberdade ao lado dele!

Foi então que lhe ocorreu que ninguém sozinho conseguiria cruzar aquela correnteza! Seria desmedida tolice! E, com um sorrisinho irônico no canto de seus lábios, ele percebeu o que precisaria fazer para alcança-la: bastava estender sua mão, agarrar a dela do outro lado e trazê-la para si, para então fazê-la feliz!

Assim, com franco sorriso, estendeu a mão. Bastava agora que ela queresse.

sábado, 18 de junho de 2011

Palavras e Atos

-E eu vou te amar hoje, amanhã e sempre. Porque não tem nada que me faça mais feliz na vida do que ver seu sorriso ou sentir sua respiração bem perto de mim ou mesmo acordar e te ver ao meu lado. Eu quero ficar sempre assim com você. Eu te amo.
E foi com essas palavras que ela, sorrindo feliz, se aninhou em seus braços e deixou toda a insegurança da idade que carregava, da filha que dormia no quarto ao lado, dos problemas de família, de saúde, de tudo. Só o que importava era o calor que emanava do peito nu dele, aquecendo sua alma, seu ego, fazendo-a a mais feliz das mulheres com suas doces palavras!
Adormeceu sorrindo.
***


-É um carcinoma ductal. Bem... Olhando pela radiografia, ele está com o desenvolvimento já bastante acelerado. A cirurgia vai precisar ser feita com urg... - Ela já não ouvia mais, já tivera o suficiente. Estava fechando calmamente os botões de sua blusa, devagar. É claro que estava num estágio avançado: mesmo por cima da blusa ela conseguia senti-lo em seu seio, como um limão, sugando sua vida, limitando aos poucos suas possibilidades.
Ela ansiava tanto por um carinho que pôde mesmo sentir a força do aperto que ele nunca chegara a dar em seu braço, aquele que lhe daria energia para suportar aquela frieza de jaleco branco. Ou mesmo para limpar as lágrimas que ela não conseguia segurar e que rolavam por sua face. Disse-lhe que era trabalho. Ou família. Ou ambos. Ou nada.
***


Cirurgia. 
Estado de sonho.
Amigos. 
Dor.
Sorrisos.
... Ausência.
***


Tinha feito sua segunda sessão de quimioterapia pela manhã. Metástase. Descansara e agora estava em casa para se recuperar, pois a única sensação boa que restara em seu corpo era esperança pela cura. Sentia tamanha fraqueza que qualquer movimento lhe custava grandes arquejos ofegantes. Mas ainda assim estava sentada em frente à penteadeira, escovando seus cabelos, preparando-se para deitar.


Passou a escova uma, duas vezes e sentiu metade de seu belo cabelo lhe deixar sem maiores despedidas. Chorou um uivo de dor que transpassa a dor física que sentia: era sua vaidade se esvaindo no chão, conforme se misturavam pelo piso frio os cabelos às suas lágrimas. Queria um abraço, mas não havia ninguém. Havia uma ligação perdida em seu celular, de alguns dias atrás e nada mais. Não lembrara do aniversário de namoro, não lembrara de apanhá-la após a quimio. Seus amigos podiam pegá-la, dissera. Sem flores ou restaurantes elegantes para a mulher doente. Chorando sentida e sem terminar com seus cabelos, deitou-se.
***


Naquele dia não fora à quimio, como já fizera na semana anterior. Não havia mais horizontes brilhantes aguardando por ela. Estava tudo escuro. Amuada, deitou-se, ajudada pela filha, para tão logo levantar-se tossindo, com dificuldade, com pressa, vomitando. Sangue. Tontura. Gritos. Filha. Mãe. Desmaio.
***


Rosto sucedia rosto conforme piscava. Amiga. Faculdade. Filha. Amiga. Amigo. Lágrimas. Médico. Filha. Dor. Médico. Conseguiu formular em sua cabeça o risinho que ironizava a si mesma por ter sido tão tola de acreditar naquelas palavras que pareciam ter sido ditas há séculos atrás. Ditas por aqueles lábios que tanto beijara, que tanto amara, que tanto desejava agora, independente de seu estado degradado, apenas para vê-la, para acompanhá-la até essa próxima viagem. Mas não havia nada daquilo: seu corpo não pudera realizar os atos consagrados em suas palavras e, por isso, ele a deixara. Era um fraco. Mas ela tinha a todos que estavam ali com ela. Seus amigos. Já não pensava nisso com tanta força. Já não pensava muito. Já não doía muito. Era só mais um suspiro e, logo, ela estava livre...
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Infelizmente, baseado em fatos reais.

domingo, 5 de junho de 2011

Confiança

Era uma pergunta simples e despretensiosa, mas ela a respondeu com uma mentira.


Não é como se gostasse de mentir, claro. Ao contrário: detestava. Mas como abrir sua vida de qualquer forma depois de ter sido tão magoada? Lembrava-se como se fosse ontem de suas crenças despedaçadas e espalhadas como um dente-de-leão ao vento, de seu coração quente partido como um bloco de gelo jogado ao chão.
Olhou mais uma vez para o verde daqueles olhos que a indagavam. Pareciam tão sinceros e a pergunta não era nem mesmo complexa, ou sobre seus segredos. Mas a sinceridade que emanavam era a mesma daqueles olhos que haviam  sido seus um dia e que, ainda há pouco, haviam-na esmagado sob o peso de uma inacreditável traição. O que mais lhe machucara é que não fora por outro amor que fora trocada...
Seus sentimentos, tão fortes e perenes, haviam sido postos de lado para que aventuras fossem vividas: uma mais fugaz que a outra. Como poderia, então, colocar a si mesma novamente nessa roda da sorte que é o jogo da confiança, se não pudera nem mesmo acreditar naquele a quem tanto e por tão longo tempo devotara sua atenção?
Estava exagerando, sabia-o. O que lhe fora perguntado não exporia seus sentimentos! Era apenas um medo, infundado, de se mostrar verdadeira, como sempre fora, frente a alguém que não poderia dizer ao certo se corresponderia à sua sinceridade habitual. Para não se ferir, mentira. E por não fazer parte do mundo das inverdades, imediatamente sentiu-se mal por tê-lo feito.
Qual impasse se lhe impusera! Contar a verdade e iniciar um vínculo de confiança, daqueles que dilaceram se forem quebrados, ou persistir na mentira e permanecer inabalável e sem dor, porém sozinha? Ela olhou de novo para aqueles olhos e não viu neles maldade qualquer. Apenas um brilho indistinto, mas que lhe inspirava segurança, apesar do pouco tempo de convivência.
Todo esse pensamento transcorrera no intervalo de um suspiro! Portanto, ainda havia tempo para desfazer o mal da mentira! Assim, hesitante, contou-lhe a verdade, com um sorriso mais para si mesma. Queria-o a seu lado, pois fazia-lhe bem! E não havia nada melhor para suplantar laços rompidos do que novos laços, mais fortes e duradouros! E conforme a verdade fluíra, ela imediatamente se sentiu melhor: estava em paz consigo mesma, pois havia se determinado conforme seus próprios valores!


Novos horizontes tinham acabado de se abrir.


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Não é que eu costume escrever para alguém, ainda que me inspire em meus amigos para contar histórias, mas essa situação mereceu um destaque especial!


Um bom domingo a todos!

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Mulheres

Ela estava se sentindo péssima! Terrivelmente irritada! Já fazia alguns dias que ele não dava um sinal de vida desde que haviam combinado de se encontrar naquele cinema. Para completar, ela estava se sentindo inchada, mau humorada, o sorvete que havia comprado caíra quando uma qualquer nela esbarrara e... e... e era isso.


Agora que não tinha como se refrescar, percebia como o sol ao alto queimava-a enquanto ela o esperava, sentada num dos bancos do shopping ao ar livre. Ele não estava muito atrasado, mas no estado que ela se encontrava, estava prestes a voar em seu pescoço: mordendo, arranhando e... beijando.


Ainda irritada, começou a mexer uma perna enquanto avaliava outras garotas que passavam. Uma era decididamente gorda pra curtíssima roupa que comprara; a outra havia esquecido a dignidade em casa conforme saíra com aquele cabelo reto, duro, ruim; já a terceira que passara tinha... ela era muito... ela estava com... era uma piriguete.


Bufando por não haver conseguido encontrar defeitos nessa última, virou-se para o outro lado e sentiu como se tivesse descido três degraus de uma só vez! Andando ao sol, descontraído, seu par vinha a seu encontro! Ele estava com aqueles belos óculos escuros, escondendo a beleza daquele olhar que falava muito sem nada dizer. Ela se levantou para lhe chamar a atenção, sorriu vacilante para ele, e deu um aceninho rápido.


Ao percebê-la, ele tirou os óculos e sorriu aquele sorriso franco, aberto, que só ele tinha e ela não pôde deixar de soltar um longo suspiro, desses que se solta quando se está apaixonado, deixando toda a raiva e irritação de há cinco minutos para trás. 


Ela o via caminhar com uma leveza, uma tranquilidade que não condiziam com o estado em que ela estava ainda há pouco! Viu, então, o sorriso que lhe endereçava e percebeu como era fácil para ele mostrar os dentes daquele jeito, pois era sempre assim que ele a recebia ou a seus amigos... e amigas. Conforme ele se aproximava, percebeu que aqueles olhos que nada diziam não estavam lhe falando nada àquele momento e esse obviedade era consternante! Então, começou a ver perceber que ele não poderia simplesmente estar tão feliz quanto aparentava, pois se atrasara para vê-la e o mínimo que esperava era que estivesse pelo menos ansioso para o encontro! 


A não ser que ele não estivesse ansioso.


Ou que estivesse saindo de outro encontro.


Assim, ele ia vencendo os últimos metros que o separavam dela, que não mais sorria mas exibia uma digníssima carranca e eis que ele, ao abrir os braços para neles aconchegá-la, leva um sonoro tapa na face ao que ela foge, aos prantos, deixando para trás a cara mais confusa que qualquer homem conseguiria fazer em semelhante situação!

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Byrwinn

Já fazia um tempo desde que tudo acontecera. Eu caminhava rumo ao alto daquele pico, onde encontraria certa tranquilidade para acalmar meus pensamentos e organizar minhas ideias. A vontade era apenas esta: continuar caminhando, numa premente necessidade de movimentar o corpo, atando a mente ao esforço físico para que meus pensamentos não tornassem a você, meu amigo.

Eu sentia como se o caminhar para o alto me levasse para mais perto de você. Claro que eu não sei se, em sua crença pagã, os mortos se elevavam, mas a minha ideia era a de que o seu espírito tinha uma leveza natural que tornava impossível a ideia de que não subisse ao alto. Mais, sendo você o Vento Gelado, era impossível que não se juntasse no alto, onde rugiria mais forte, mais gelado, mais livre.

Finalmente, ao chegar ao cume, encontrei certa pedra, nela me recostei e me pus a apreciar o fim de tarde, com o pensamento correndo solto. Era uma injustiça que eu pudesse apreciar esse espetáculo da natureza e você não... O sol se punha no horizonte e levava consigo os últimos resquícios de calor. Adiando o momento de reflexões, abri uma cerveja e, homenageando-o, sorvi um longo gole.

A amargura da bebida fundiu-se com a que eu vivenciava após o trágico incidente. A covardia do ataque, sem possibilidade alguma de defesa, era o extremo oposto da coragem que você apresentara frente a uma das faces da Ceifadora. Quando a história me foi contada, eu já sabia que você não teria abaixado sua cabeça nem por um momento, que seu coração guerreiro não se intimidaria frente a ameaça alguma. Infelizmente, somente sua bravura não fora suficiente para subjugar a covarde brutalidade daquelas mentes ínfimas. E isso é o que dói mais, pois, num momento, a violência torpe subjugou a refinada inteligência e essa inversão da ordem natural de forças, que em si já é injusta, no seu caso, era um erro crasso cometido pela fortuna do mundo.

Você se foi, meu amigo, e levou consigo todas as suas histórias fantásticas, todos os seus belos contos e dialetos, todas as novidades que haviam em você e que não chegaremos a conhecer. E esse era o motivo de eu estar postado no alto daquele morro de ventos uivantes, pois, quem sabe, talvez eu conseguisse distinguir, em meio ao rugido do vento, a sua voz, o seu chamado, para que então pudesse resgatar um pouco mais da sua essência além do Véu e trazê-la para este lado, reestabelecendo, então, um pouco do equilíbrio das coisas.

Já escurecera e esfriara quando eu fechei meus olhos e apurei meus ouvidos. A única nota grave soprada pelo vento arrepiou-me. Uuuuuuu. Era um lamento triste, que não podia ser seu, pois sua vida fora sempre repleta de alegria e rica em conhecimento! Tanto que essa tragédia deixava apenas uma única mensagem, uma lição a ser seguida por todos aqueles que o conheceram: não importa o que acontecer, viva. Aproveite todas as chances que tiver para sorrir, para saborear as coisas boas da vida. Não procrastine as possibilidades ofertadas por seus talentos: absorva o mundo inteiro e lhe devolva com sua essência, acrescentando-lhe suas próprias características, pois se hoje o mundo é “tal”, amanhã será “qual”, pois nele haverá um pouco mais do que cada um houver lutado para lhe acrescentar. Assim, veremos que mudar o mundo não é nenhum trabalho hercúleo, basta apenas ter a vontade de deixar o conforto de lado e botar as mãos na massa.

Ao tomar consciência dessa lição, eis que meu coração se encheu de pesar pelo preço que você precisou pagar, independente de sua vontade, para que eu pudesse aprender. A força das emoções fez com que levasse às mãos à cabeça, em angústia conforme vinham: saudade, pesar, raiva, dor. Eram de tal forma avassaladoras que, finalmente, naquela noite fria, o Corvo Chorão tornou suas lágrimas ao Vento Gelado, onde quer que estivesse.

Que seu nome seja lembrado, Byrwinn.

sábado, 9 de abril de 2011

Pequenas Belezas Diárias

Ele já havia se levantado há algum tempo. Tinha preparado um café forte e agora estava sentado numa cadeira, na varanda, olhando enquanto ela dormia seu sono sereno. O caderno já se encontrava aberto sobre seu colo, mas ele ainda não sentia vontade de lhe deitar as palavras, pois ainda havia muito a se observar antes de escrever.

Era um desses dias que já começavam quentes, de modo que a porta aberta não perturbaria seu sono com correntes de ar. Somente uma pequena faixa de luz do sol invadia no quarto e iluminava torneadas pernas, conferindo um brilho dourado na pele que tocava. Conforme ele se levantara, ela, que estava deitada em seu peito, permanecera de lado, na mesma posição, imperturbável pelo levante do rapaz.

Ainda indisposto à escrita, pôs-se a acompanhar preguiçosamente o movimento da luz do sol sobre aquele pequeno corpo. Ela vestia um shortinho de um confortável pijama velho e uma blusa cinza, de ginástica. Seu peito subia e descia com a respiração, lenta e despreocupadamente. Ele sorriu, satisfeito por ter consigo tão bela presença!

Sentindo-se inspirado, mal tocara o papel com a lapiseira, arranhando-o com as primeiras palavras deste texto, quando viu-a abrir os olhos e presenteá-lo com seu verde-indefinível. Cheia de sono, ela apenas lhe resmungou alguma coisa qualquer, cobriu-se até a cabeça com o lençol e virou para o outro lado.

-Sabe o que é mais difícil que desenhar sem olhar? - perguntou ele. Tendo como resposta apenas outro resmungo mau humorado, continuou: - É descrever, com palavras, sem olhar.
-Você não pode me descrever! Eu estou dormindo, sabe! - reclamou ela, ainda virada de costas para ele.
-Tem razão! Por isso, precisamos dar um jeito nisso!

Colocando caderno e café de lado, pulou na cama, por cima dela, despejando-lhe todo seu peso e beijando seu rosto onde as mãos dela não conseguiam repeli-lo! Rindo, continuaram nessa disputa por mais algum tempo, até ela se desvencilhar e levantar na cama:

-Muito bonito, não?! - disse, em falso tom de censura. - Você aproveita pra me descrever quando eu acabo de acordar e estou horrível! O que é que você vai colocar aí no seu papel?!

Ele pensou, então, em falar de como ela tentava transmitir autoridade colocando as mãos na cintura daquele jeito, ou como o sono conseguia vencer horas e horas de prancha alisadora, deixando seu cabelo repleto daquelas ondinhas das quais tanto gostava! Pensou também em comentar como a espontaneidade de uma alcinha, caída de sua blusa, lhe deixava sexy e atraente. Sorrindo, pensou isso tudo, mas para irritá-la respondeu:

-Tem razão, melhor nem escrever nada!

Não contendo outro acesso de fúria, ela se jogou para cima dele, tentando atingi-lo com socos e fazendo cócegas! Ria e ria, conforme ele usava de sua força para repeli-la e então voltar a cobri-la de beijos. Era um pequeno momento fugaz desse casal, mas tão cheio de vida e de felicidade que não haveria como não guardá-lo consigo entre suas lembranças felizes, pois às vezes é só disso que se precisa: pequenas belezas diárias que, em sua unidade,  pouco podem, mas unidas têm o poder de colocar uma vida no caminho da felicidade.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Saudade

"Olha, querido, está tocando aquela música!"

Não que as palavras tivessem de fato saído escapado de seus lábios, mas ela sentia como se assim tivesse sido. No entanto, teve de manter essa doçura apenas em pensamento pois a pessoa a quem lhe dirigia tal carinho não estava mais com ela, já há alguns anos.

Era uma música estrangeira, de há muito tempo atrás, quando eram jovens. Uma melodia lenta que terminava acelerada e que eles dançaram em momentos felizes. Os últimos acordes, que antes eram acompanhados de risos e beijos, agora misturavam-se a solitárias lágrimas que escorriam lentamente por sua face.

Esse hábito que criara, de falar a ele como se ainda estivesse ali, ela o sabia, não lhe fazia bem. Mas a situação em que se encontrava era muito angustiante! Todos os momentos felizes que passaram juntos, todas as brigas, as discussões sobre filmes, política, sobre a vida... Tudo se fora naquele último suspiro...

Ele estava deitado, já em casa. Os médicos lhe concederam esse gosto, para que pudesse passar mais algum tempo com os que lhe eram mais queridos. Ela não saíra de perto dele, nem por um instante, com receio de que, ao desviar-lhe os olhos, a Morte lhe viesse, aproveitando-se de seu momento de descuido.

Então, num dia de nublado e frio, a frágil mão que apertava, maltratada pela doença que o vencia, subitamente retribuiu o aperto. Seu olhar, antes vago e cansado, agora exibia uma urgência, como se quisesse expressar, de fato, toda uma vida pelos olhos, pois o fôlego já começara a lhe faltar. Ela apertou-lhe a mão, com força e desespero crescentes, uma torrente de lágrimas jorrando sobre o peito do marido, do amor de sua vida! Era como se aquele aperto fosse segurar seu espírito junto a ela: depositara suas esperanças nesse desejo.

Quando os lábios cessaram a pressão do beijo que então lhe dera na fronte serena, houve uma troca de sensações: deixara com ele a possibilidade de amar daquele jeito novamente, pois sabia que amor assim novamente não encontraria, ao passo que tomara-lhe toda uma dose daquela saudade que fica.

Saudade era só o que sobrara no fundo daquela taça de vinho que costumavam dividir antes de se deitar. Que ficara no vazio deixado ao seu lado na cama, nas coisas pequenas que compartilhavam, em todos os dias nos quais se apaixonaram repetidamente por suas qualidades e, principalmente, por seus defeitos mútuos.

Reviver esses pensamentos fazia tão bem a ela quanto as conversas que imaginava com ele. Mas não podia deixar de tê-los, era seu único conforto na interminável espera até que pudessem se reunir novamente.

Até lá, secou as lágrimas e pôs-se a ouvir a próxima música e a reviver a próxima lembrança.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Santo

"O Júnior havia convertido sua batida e eu respirei fundo. O que entrava em meus pulmões não era ar, mas uma vontade insana de vencer: eu era concentração pura.

Dirigi-me às traves que tão bem conhecia. Bati as luvas, estava ansioso, claro. À minha frente, ajeitava a bola na marca do pênalti aquele que sempre com tanta arrogância se dirigia ao meu clube, às minhas cores, à minha torcida. A raiva misturou-se à vontade de vencer e fê-la crescer. Seus outros companheiros também haviam convertido suas cobranças... Eles eram um reflexo de tudo o que eu desprezava: a soberba, ao mandar os palestrinos se calarem, era repugnante.

Respirei fundo mais uma vez, para me acalmar. Toda a minha concentração ia se sobrepondo a resquícios de desconfiança quanto a minha capacidade, pois eu ainda não defendera nenhuma penalidade e o "Pé-de-Anjo" era, de fato, exímio em seu ofício e eu jamais poderia subestimá-lo. Mas, para mim, era melhor assim! Era melhor que a pressão estivesse mais para o batedor do que para o defensor. Expirei meus últimos receios.

A bola estava arrumada na marca e estávamos de frente, um para o outro. Eu via refletido no olhar dele algumas de minhas inseguranças, podia ver seu cérebro escolhendo um lugar para bater. Todos os preparativos tinham sido concluídos: goleiro posicionado, bola na marca, batedor à distância certa.

Fechei os olhos por um instante, em oração por proteção: pedi que, se perdesse, que mantivesse a dignidade; que se caísse, não me machucasse; e se me machucasse, que me recuperasse logo, para voltar ao meu trabalho e poder continuar ajudando minha família e minha torcida.

E então o juiz apitou e, nessa hora, o mundo silenciou e parou. Parou para ouvir os batimentos do meu coração, que não estava sozinho! Junto a ele, batiam milhões de outros corações, verdes e brancos, naquela expectativa, num único anseio que não necessitava de palavras para ser expresso: era como uma oração, que aguçava os meus sentidos e me impelia!

Eu o vi correr para a bola.

Não! Nós o vimos correr para a bola! Pedi proteção uma última vez e, guiado pelo talento, pela minha vontade somada à dos torcedores, impulsionei meu corpo, deixando para trás todo o cansaço, toda a dor daquelas partidas!

E eu vi a bola vir, bater em minha mão e voltar para onde tinha vindo.

E o som voltou com o grito de triunfo que saiu da minha garganta! Eu era só alegria, só sorriso! Levantei-me tão rápido quanto pude e me pus a correr pelo campo, saudando a torcida, sendo abraçado ao comemorar com os meus pela vez em que a humildade superou a prepotência, por aquele dia glória! Eu havia conseguido."

Por aquele dia em que o homem virou santo! Parabéns, São Marcos!

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Momentos

A garota que passava o rímel com delicadeza, abusava do blush, com esmero, regozijando-se em simples alegria com o efeito que causava frente ao espelho. Não ligava para o exagero no pó, ainda que dele não muito gostasse, mas a tendência fazia com que agisse desse jeito. Destoar, talvez, não fosse nada interessante. Imagem, sim, era tudo.

Dando uma última ajeitada no cabelo e levantando um pouco os shorts que usava, respirou fundo e saiu de casa com as amigas, para onde encontraria, novamente, aqueles momentos de êxtase, numa pista de dança ou onde quer que fosse!

Ao chegar, foi apresentada a uma dose de uma forte bebida âmbar. Risos. O trajeto do copo à boca foi pontuado por lembranças, mas não havia tempo para recordar lições de caráter dadas em outras tenras idades agora, pois agora era hora de deixar no fundo do copo vazio aquelas características que a definiam e a individualizavam, em prol daqueles instantes. Tal qual fora previsto, cada risada, cada sorriso trazia consigo um pedacinho de momento feliz. A fugacidade da alegria não era importante àquela hora, apenas importava a próxima dança, a próxima música, o próximo encontro de olhares...

A volta no carro foi tão ou mais feliz que a ida! Apesar de cansadas, e incentivadas pelas doses da âmbar bebida, as amigas riam como nunca ao se despedirem da garota que, com um aceno, viu o carro fazer a curva e, com ele, levar o que sobrara de seus preciosos instantes.

Entrou em sua sala, e sentou-se, sozinha. A alegria de há pouco se fora conforme via entrarem pelas frestas da janela, da porta e do teto aquelas que haviam sido afastadas pelo estado de sonho anterior: a Solidão, a Tristeza e a Angústia. Sentaram-se ao lado da garota, que as abraçou conforme viu que, simplesmente, não havia ninguém mais e, logo, escapatória! Que tudo o que uma vez tivera, escapara de suas mãos como que levada por uma forte lufada de realidade. Ao esvaírem-se os instantes, viu-se ali, postada, com a alma despedaçada nas frias mãos de seu próprio tormento. Percebia aos poucos como tudo em sua vida era vão e fugaz como o efeito de uma dose de álcool.

Desesperada, agarrou-se à única âncora que lhe sobrara: pegou seu celular e, desprezando as novas mensagens, buscou por aquelas de tempos de outrora, quando não soubera dar valor a quem lhe valorara. Aos prantos, relia-as diversas vezes, com voracidade, como se pudessem fugir dali como um de seus preciosos momentos, dos quais tanto precisava.

Chorava. E o choro que escapou-lhe da garganta teve causa na certeza de que aquele remetente, por mais que teimasse em pensar que não, em achar que estaria ali a lhe esperar, recomeçara uma nova vida, da qual não poderia fazer parte, pois esta que ele reconstruíra era baseada na plenitude da permanência enquanto ela, em sua vil mesquinhez, optara, lugubremente, pelo momento.