Já fazia um tempo desde que tudo acontecera. Eu caminhava rumo ao alto daquele pico, onde encontraria certa tranquilidade para acalmar meus pensamentos e organizar minhas ideias. A vontade era apenas esta: continuar caminhando, numa premente necessidade de movimentar o corpo, atando a mente ao esforço físico para que meus pensamentos não tornassem a você, meu amigo.
Eu sentia como se o caminhar para o alto me levasse para mais perto de você. Claro que eu não sei se, em sua crença pagã, os mortos se elevavam, mas a minha ideia era a de que o seu espírito tinha uma leveza natural que tornava impossível a ideia de que não subisse ao alto. Mais, sendo você o Vento Gelado, era impossível que não se juntasse no alto, onde rugiria mais forte, mais gelado, mais livre.
Finalmente, ao chegar ao cume, encontrei certa pedra, nela me recostei e me pus a apreciar o fim de tarde, com o pensamento correndo solto. Era uma injustiça que eu pudesse apreciar esse espetáculo da natureza e você não... O sol se punha no horizonte e levava consigo os últimos resquícios de calor. Adiando o momento de reflexões, abri uma cerveja e, homenageando-o, sorvi um longo gole.
A amargura da bebida fundiu-se com a que eu vivenciava após o trágico incidente. A covardia do ataque, sem possibilidade alguma de defesa, era o extremo oposto da coragem que você apresentara frente a uma das faces da Ceifadora. Quando a história me foi contada, eu já sabia que você não teria abaixado sua cabeça nem por um momento, que seu coração guerreiro não se intimidaria frente a ameaça alguma. Infelizmente, somente sua bravura não fora suficiente para subjugar a covarde brutalidade daquelas mentes ínfimas. E isso é o que dói mais, pois, num momento, a violência torpe subjugou a refinada inteligência e essa inversão da ordem natural de forças, que em si já é injusta, no seu caso, era um erro crasso cometido pela fortuna do mundo.
Você se foi, meu amigo, e levou consigo todas as suas histórias fantásticas, todos os seus belos contos e dialetos, todas as novidades que haviam em você e que não chegaremos a conhecer. E esse era o motivo de eu estar postado no alto daquele morro de ventos uivantes, pois, quem sabe, talvez eu conseguisse distinguir, em meio ao rugido do vento, a sua voz, o seu chamado, para que então pudesse resgatar um pouco mais da sua essência além do Véu e trazê-la para este lado, reestabelecendo, então, um pouco do equilíbrio das coisas.
Já escurecera e esfriara quando eu fechei meus olhos e apurei meus ouvidos. A única nota grave soprada pelo vento arrepiou-me. Uuuuuuu. Era um lamento triste, que não podia ser seu, pois sua vida fora sempre repleta de alegria e rica em conhecimento! Tanto que essa tragédia deixava apenas uma única mensagem, uma lição a ser seguida por todos aqueles que o conheceram: não importa o que acontecer, viva. Aproveite todas as chances que tiver para sorrir, para saborear as coisas boas da vida. Não procrastine as possibilidades ofertadas por seus talentos: absorva o mundo inteiro e lhe devolva com sua essência, acrescentando-lhe suas próprias características, pois se hoje o mundo é “tal”, amanhã será “qual”, pois nele haverá um pouco mais do que cada um houver lutado para lhe acrescentar. Assim, veremos que mudar o mundo não é nenhum trabalho hercúleo, basta apenas ter a vontade de deixar o conforto de lado e botar as mãos na massa.
Ao tomar consciência dessa lição, eis que meu coração se encheu de pesar pelo preço que você precisou pagar, independente de sua vontade, para que eu pudesse aprender. A força das emoções fez com que levasse às mãos à cabeça, em angústia conforme vinham: saudade, pesar, raiva, dor. Eram de tal forma avassaladoras que, finalmente, naquela noite fria, o Corvo Chorão tornou suas lágrimas ao Vento Gelado, onde quer que estivesse.
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