quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Santo

"O Júnior havia convertido sua batida e eu respirei fundo. O que entrava em meus pulmões não era ar, mas uma vontade insana de vencer: eu era concentração pura.

Dirigi-me às traves que tão bem conhecia. Bati as luvas, estava ansioso, claro. À minha frente, ajeitava a bola na marca do pênalti aquele que sempre com tanta arrogância se dirigia ao meu clube, às minhas cores, à minha torcida. A raiva misturou-se à vontade de vencer e fê-la crescer. Seus outros companheiros também haviam convertido suas cobranças... Eles eram um reflexo de tudo o que eu desprezava: a soberba, ao mandar os palestrinos se calarem, era repugnante.

Respirei fundo mais uma vez, para me acalmar. Toda a minha concentração ia se sobrepondo a resquícios de desconfiança quanto a minha capacidade, pois eu ainda não defendera nenhuma penalidade e o "Pé-de-Anjo" era, de fato, exímio em seu ofício e eu jamais poderia subestimá-lo. Mas, para mim, era melhor assim! Era melhor que a pressão estivesse mais para o batedor do que para o defensor. Expirei meus últimos receios.

A bola estava arrumada na marca e estávamos de frente, um para o outro. Eu via refletido no olhar dele algumas de minhas inseguranças, podia ver seu cérebro escolhendo um lugar para bater. Todos os preparativos tinham sido concluídos: goleiro posicionado, bola na marca, batedor à distância certa.

Fechei os olhos por um instante, em oração por proteção: pedi que, se perdesse, que mantivesse a dignidade; que se caísse, não me machucasse; e se me machucasse, que me recuperasse logo, para voltar ao meu trabalho e poder continuar ajudando minha família e minha torcida.

E então o juiz apitou e, nessa hora, o mundo silenciou e parou. Parou para ouvir os batimentos do meu coração, que não estava sozinho! Junto a ele, batiam milhões de outros corações, verdes e brancos, naquela expectativa, num único anseio que não necessitava de palavras para ser expresso: era como uma oração, que aguçava os meus sentidos e me impelia!

Eu o vi correr para a bola.

Não! Nós o vimos correr para a bola! Pedi proteção uma última vez e, guiado pelo talento, pela minha vontade somada à dos torcedores, impulsionei meu corpo, deixando para trás todo o cansaço, toda a dor daquelas partidas!

E eu vi a bola vir, bater em minha mão e voltar para onde tinha vindo.

E o som voltou com o grito de triunfo que saiu da minha garganta! Eu era só alegria, só sorriso! Levantei-me tão rápido quanto pude e me pus a correr pelo campo, saudando a torcida, sendo abraçado ao comemorar com os meus pela vez em que a humildade superou a prepotência, por aquele dia glória! Eu havia conseguido."

Por aquele dia em que o homem virou santo! Parabéns, São Marcos!

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Momentos

A garota que passava o rímel com delicadeza, abusava do blush, com esmero, regozijando-se em simples alegria com o efeito que causava frente ao espelho. Não ligava para o exagero no pó, ainda que dele não muito gostasse, mas a tendência fazia com que agisse desse jeito. Destoar, talvez, não fosse nada interessante. Imagem, sim, era tudo.

Dando uma última ajeitada no cabelo e levantando um pouco os shorts que usava, respirou fundo e saiu de casa com as amigas, para onde encontraria, novamente, aqueles momentos de êxtase, numa pista de dança ou onde quer que fosse!

Ao chegar, foi apresentada a uma dose de uma forte bebida âmbar. Risos. O trajeto do copo à boca foi pontuado por lembranças, mas não havia tempo para recordar lições de caráter dadas em outras tenras idades agora, pois agora era hora de deixar no fundo do copo vazio aquelas características que a definiam e a individualizavam, em prol daqueles instantes. Tal qual fora previsto, cada risada, cada sorriso trazia consigo um pedacinho de momento feliz. A fugacidade da alegria não era importante àquela hora, apenas importava a próxima dança, a próxima música, o próximo encontro de olhares...

A volta no carro foi tão ou mais feliz que a ida! Apesar de cansadas, e incentivadas pelas doses da âmbar bebida, as amigas riam como nunca ao se despedirem da garota que, com um aceno, viu o carro fazer a curva e, com ele, levar o que sobrara de seus preciosos instantes.

Entrou em sua sala, e sentou-se, sozinha. A alegria de há pouco se fora conforme via entrarem pelas frestas da janela, da porta e do teto aquelas que haviam sido afastadas pelo estado de sonho anterior: a Solidão, a Tristeza e a Angústia. Sentaram-se ao lado da garota, que as abraçou conforme viu que, simplesmente, não havia ninguém mais e, logo, escapatória! Que tudo o que uma vez tivera, escapara de suas mãos como que levada por uma forte lufada de realidade. Ao esvaírem-se os instantes, viu-se ali, postada, com a alma despedaçada nas frias mãos de seu próprio tormento. Percebia aos poucos como tudo em sua vida era vão e fugaz como o efeito de uma dose de álcool.

Desesperada, agarrou-se à única âncora que lhe sobrara: pegou seu celular e, desprezando as novas mensagens, buscou por aquelas de tempos de outrora, quando não soubera dar valor a quem lhe valorara. Aos prantos, relia-as diversas vezes, com voracidade, como se pudessem fugir dali como um de seus preciosos momentos, dos quais tanto precisava.

Chorava. E o choro que escapou-lhe da garganta teve causa na certeza de que aquele remetente, por mais que teimasse em pensar que não, em achar que estaria ali a lhe esperar, recomeçara uma nova vida, da qual não poderia fazer parte, pois esta que ele reconstruíra era baseada na plenitude da permanência enquanto ela, em sua vil mesquinhez, optara, lugubremente, pelo momento.